29.2.08

Os "Outros" argentinos

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Um amigo argentino, repórter do diário La Mañana, de Córdoba, escreveu sobre as diferentes formas de discriminação perceptíveis em seu país. A reflexão que Daniel Zen apresenta, sobre a tentativa de construir uma identidade coletiva que ignora minorias, pode nos ajudar a entender a maneira como eles vêem a si mesmos. A pedido dele, publico no Polipoliticus com satisfação. Traduzi com meus próprios meios, o que pode ter empobrecido um pouco a versão original. Entretanto, recomendo a leitura para quem quiser entender um pouco mais do imaginário coletivo que permeia a nação vizinha.


Os “Outros” argentinos

Breve e incômodo resumo da

discriminação crioula desde 1880

Ao longe, no fundo de nosso estruturante imaginário social, retumba como latido uma frase, um sentimento: “o orgulho de ser Argentinos”. E olhamos para o céu e agradecemos. Por um momento sentimos como se nos abraçassems fortemente com cada um dos que habitam estas terras (o “Outro” generalizado) e nos fundíssemos, até convertermos em um só ser: o ideal de ser argentino.

E olhamos para a terra e despertamos. Saímos de casa e vemos com surpresa argentinos (leia-se habitantes) que não condizem com o que havíamos acabado de imaginar. Por que eles estão aqui?, se nós não somos assim...

E que ao longo da história, nossa sociedade se encarregou de decidir quem são mais “nós”, mais argentinos que outros. E contar essa história é contar a tradição de discriminação e intolerância de nosso país.

Será feita aqui uma breve recapitulação da marginalização crioula, a partir da época do presidente Roca (1880), levando em consideração estudos do antropólogo argentino Mario Margulis.

Apesar disso, não significa que ignore que o tratamento diferenciador já havia começado em nosso território com as aberrações cometidas pelos colonizadores ibéricos contra os nativos, em tempos anteriores à constituição da República.

Tampouco implica desconhecer que logo, o idolatrado Domingo Faustino Sarmiento, havia feito de sua aversão à população autóctone das pampas – os gaúchos – a causa nacional da “barbárie”, idéia que, por outro lado, constitui a essência dessa obra de convicções explicitamente xenofóbicas que o é “O Facundo”, infelizmente consagrada logo como um clássico da literatura romântica nacional.

Mesmo que a marginalização social teve contemporaneamente várias vertentes, se dividem fundamentalmente em três, e coincidem com os processos migratórios do país.

A primeira se sucedeu a partir de 1880 até início do século 20. A Argentina recebeu imigrantes de diversas partes, principalmente da Europa. Eram em sua maioria gente do campo, pobre e com pouca instrução. Aí aparecem formas de discriminação sintetizadas em frases como “tano miserable”, “gallego bruto”, “turco vendemadre”. Elas desaparecem notoriamente quando os imigrantes têm filhos nascidos na Argentina.

A segunda ocorre entre os anos 40 e 50. Nesse momento, há paralelamente duas correntes. Uma, a menor, se dá quando o país recebe judeus fugitivos do nazismo. A hospitalidade argentina os batiza rapidamente de “tacaños”, denominação em uso até hoje, mesmo de maneira sigilosa. A outra corrente, de enorme envergadura e maior efeito social, é uma migração interna do campo aos incipientes cinturões industriais das grandes cidades, que germinavam ao calor da escassez de alimentos na Europa do pós-guerra. Os aristocratas, a gente “de bem”, que via o poder escapar de suas mãos na “década infame” (1930-1940), os batizou de “Cabecitas Negras”. Será a base original do peronismo. O Estado paternalista os utilizará durante dez anos como sustento do poder, lapso em que logram certa integração social que fez diminuir a discriminação.

O terceiro grande movimento migratório se produz muitos anos depois, na época menemista. Habitantes dos países limítrofes chegam favorecidos pela convertibilidade, modelo que possibilitava enviar remessas a seus países de origem. A desculpa para discriminá-los é que roubam trabalho dos argentinos. São os “bolitas”, os “paraguas”, os “perucas”. Estende-se também aos argentinos nortistas, como os vindos das províncias de Salta e Jujuy, fato que desnuda o fundo racial da falácia que aparecia como defensora dos interesses econômicos nacionais. Como era de se esperar, essa forma de marginalização, já sem argumentos, tendeu a se dissimular com o fim da paridade peso-dólar.

Porém, a história segue em nosso tempo. E a discriminação adota uma nova forma, evolui. Já não são necessárias migrações. A raça não é mais o objeto exclusivo da discriminação. Agora, também o desprezo é para com a pobreza em geral.

O chamado “negro” inclui os moldes anteriores de discriminação e ainda mais. Como explica Margulis, o “negro” é aquele estereotipo discriminatório que configura a não inocente coincidência da falta de posses materiais, traços mestiços e vocabulário coloquial.

O “negro” parece ser o causador de todos os males da nossa sociedade: é o ladrão que destrói nossa suposta segurança de outrora, é o vagabundo que não quer trabalhar e então incomoda aos que querem pedindo esmola, rasgando nossos sacos de lixo e atrapalhando o trânsito.

Hoje, os “negros” são mais da metade da população. Apartheid. Palavra que designa discriminação da maioria pela maioria. E não estamos falando exatamente da Índia colonizada de Mahatma. Dói, acontece, ainda que as cifras dos Kirchner não queiram evidenciar a quantidade de pobres e nós, a parte da sociedade que come todos os dias, neguemos o desprezo (desprezo é também a inércia) que mantemos com os desfavorecidos.

Não é tudo. Trabalhos de Margulis atestam, além disso, que os argentinos negam de maneira tripla a discriminação.

1 – Ao perguntar se o argentino discrimina, a resposta é não.

2 – Ao perguntar sobre a etnia do argentino, se nega a existência do “Outro”. A população se sente parte de uma maioria branca, européia e de classe média.

3 – Mesmo os discriminados, aos serem questionados, respondem que não se sentem marginalizados...

Ao longe, no fundo de nosso estruturante imaginário social, retumba como latido uma frase, um sentimento: “o orgulho de ser Argentinos”. E olhamos para o céu e agradecemos. Por um momento, sentimos como se nos abraçassems fortemente com cada um dos que habitam estas terras (o “Outro” generalizado) e nos fundíssemos, até convertermos em um só ser... Mas deverá chegar o dia em que olharemos a terra, sairemos de casa e veremos sem surpresa esses “Outros” argentinos, que mais que outros, são nós.

Daniel Zen

zendaniel@gmail.com

22.1.08

A opção do Estado asséptico

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Lia um suplemento de jornal quando deparei com um parágrafo que me beliscou. No texto “O prazer de dizer não”, o poeta e autor alemão Hans Magnus Enzensberger, 78 anos, refletia sobre sua trajetória fazendo um paralelo com a política de sua pátria.

Atualmente, a Alemanha se tornou tão habitável que é dirigida por uma dona-de-casa. Melhor assim. Tranqüilizador. Sonho com o dia em que a política será um serviço público entre outros, útil com a coleta de lixo, livre das paixões que nos fizeram tanto mal. A política não deve invadir tudo. Foi por isso, por autodefesa, que escolhi a literatura, a poesia, o amor e as viagens”.

Não que tenha achado um disparate. Ocorre é que me preocupo tanto em avaliar os prós e contras de socialistas, liberais e populistas que há muito tempo não imaginava um Estado asséptico, desideologizado. É sonho, obviamente. Mas o utilitarismo implicado nesse parágrafo parece estar preocupado com o bem comum e se importa com as conseqüências do exercício do poder.

Se nos pusermos de acordo com Enzensberger, discursos comunistas, populistas, nacionalistas e nazistas viram troças, palavras sem efeito, bradadas em tom ridículo. A ideologia da desideologização pede uma postura prática e defende o fim da perseguição política. O governo deveria ser um serviço público tão discreto quanto a coleta de lixo. Na eleição, contrataríamos administradores em vez representantes de esquerda, direita ou loucos ambidestros.

Em tempos que não restam opções, em que o sonho marxista-leninista ruiu completamente, talvez a sugestão acima não seja despropositada. Somente os beneficiados do sistema acreditam que encontramos uma fórmula coerente e justa no capitalismo (pseudo)democrático-liberal.


Foto: site www.latinamericanstudies.org

30.12.07

Suerte, Bolívia!

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Não sou fã de retrospectivas e perspectivas feitas por veículos de comunicação no final do ano. Me parece uma solução para a falta de notícias nesta época em que tudo está parado. Políticos, Judiciário, times e outros geradores de manchetes estão de férias. Gostei da proposta diferente do jornal boliviano La Razón.

O periódico fez duas perguntas a 30 líderes políticos, membros do governo e da oposição. A primeira testa a iniciativa das figuras: o que o senhor pode fazer para melhorar a situação do país, considerando que, em 2008, serão discutidos temas cruciais, que poderiam gerar violência? A segunda, implicitamente, quer saber qual é a disposição que eles têm para negociar: O que o senhor vê de bom em seu adversário político?

Uma boa sacada, alinhada aos princípios do jornalismo cívico, que busca qualificar o debate político e promover a democracia. O contexto nacional boliviano clama pelo diálogo. O que preocupa é que tanto os governistas quanto os cinco prefeitos de departamentos que fazem oposição a Evo Morales não compreendem as causas que movem os adversários. Torçamos para que o ano que iniciará não seja marcado por golpes retrógrados.


Charge: Sítio do jornal La Razón

21.12.07

Onde ele aprende isto?

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Em uma conversa com jornalistas na manhã de ontem, Lula não permitiu gravadores nem blocos de anotações. Sorte de quem tem boa memória. Falou sobre uma penca de coisas, mas a declaração sobre o Mercosul vale registro.

O presidente defendeu o bloco, elogiou a reunião de Montevidéu e fechou à la Lula: "O filho pode não ser a criança mais bonita. Mas é nosso, e os outros não podem colocar defeitos".

Já cogito fazer uma compilação das metáforas e analogias do discurso luliano. Oito anos de pronunciamentos e entrevistas renderiam um livro.

20.12.07

Elas vêm chegando!



A idéia foi do Executivo. Yeda, que não tem primeira-dama para cuidar da Assistência Social, já fundiu a Pasta com a Secretaria de Justiça e agora quer entregar as rédeas para o ‘terceiro setor’.

Em pouco tempo, Ongs qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPS) poderão assumir órgãos do governo gaúcho. A Assembléia aprovou, há dois dias, o modelo de parceira entre o Estado e as entidades. A princípio, elas só tomarão conta das áreas de cultura e assistência social, nas quais o Estado concorre com a iniciativa privada.

Espera aí! Quem conseguir juntar a papelada para se credenciar poderá meter a mão em grana pública para organizar exposições, administrar teatros, criar pseudo-eventos, fazer e acontecer
Exatamente!

Enquanto durar o termo de parceria, as Ongs manejarão a estrutura estatal – incluindo edifícios, carros, equipamentos – em nome do bem social, da paz, dos direitos humanos e da solidariedade.

Eu, que até hoje não me resolvi sobre o assunto, olho desconfiado tanto para o Estado máximo quanto para o mínimo. O que espinha um pouco é esse monstro que tem cada vez mais braços e não para de crescer. Toda madame ou político já pensou em fundar um Ong, se ainda não fundou.

A descrença generalizada no Estado faz com que a sociedade desiludida avalize esse movimento. O lema é velho: já que eles não fazem, façamos nós! Não podemos esperar parados.

O que é isso? Em português claro, neoliberalismo puro, travestido de bom moço. A indústria da solidariedade veio para aquecer o mercado, gerar empregos e justificar uma penca de projetos que abocanham muita grana PÚBLICA. Quem gosta do assunto pode entender os meandros do business do bom coração no filme Quanto Vale ou é por Quilo. Veja um trechinho acima.

19.12.07

O ovo ou a galinha?

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Achei genial. Pedi autorização e Orlandeli permitiu a publicação da charge no Polipoliticus. Quem quiser conferir mais da produção do cartunista e ilustrador, pode acessar o blog.

2.12.07

O Outro Lado

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Como o colega Augusto Paim e eu mesmo achamos o último post bastante parcial, tento equilibrar a opinião sobre o discurso e as ações do presidente venezuelano. O ponto de vista não é meu. É de alguém muito mais autorizado, especializado no tema. Na última quinta-feira, entrevistei o professor de história da UFRJ e analista da Globo News Francisco Teixeira da Silva. Parte da conversa foi publicada no Diário de Santa Maria, onde trabalho com freelancer. Reproduzo aqui o que foi para o jornal. O restante vem outro dia.



Gustavo Hennemann - Que momento do processo histórico vivemos na América Latina?

Francisco Teixeira da Silva - No começo dos anos 80, a maioria da população sul-americana - em Santiago, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro e Lima - foram às ruas pedindo democracia. No continente, a democracia veio no bojo de grandes movimentos sociais, e não pelo arranjo de grupos da elite dominante, como aconteceu em outros períodos ditos democráticos da história. Significa que os grandes movimentos de democratização nesses países foram feitos por movimentos de massa. Nas duas décadas seguintes, essas demandas sociais não foram atendidas. Justamente na saída da ditadura, as pessoas passaram a ter menos empregos, empregos de pior qualidade e menos segurança cidadã. Por isso, a maioria dos latino-americanos, hoje, trocaria a democracia por mais e melhores empregos e mais segurança cidadã.


GH - Como podemos situar a figura do Hugo Chávez nesse cenário? Ele é o motor do movimento socialista da região?

FTS - Esse movimento, que luta por uma cidadania ampliada, se apresenta mais geral. Com características diferenciadas, obviamente, mas vai da Argentina, Chile até a Venezuela. É geral, e não pode ser centrado em um caso específico [de Chávez]. Agora, evidentemente, 1998 [quando Chávez é eleito] soa um alarme.



GH – O socialismo do século 21 é uma nova tentativa daquilo que já não deu certo no século 20?

FTS – Por tudo o que eu vi e conversei na Bolívia e na Venezuela, os experimentos que eles estão fazendo lá são totalmente diferentes do que foi o marxismo. Não se tem mais uma doutrina materialista da história, nem uma classe condutora da história, como o proletariado. Não se tem um partido que faz a história. Em vários encontros que tive com Evo Morales, perguntei por que o movimento se chama socialismo, mesmo sabendo o que foi a União Soviética. Ele disse ‘Socialismo para mim é o que eu vi a minha avó e minha mãe fazendo juntas na terra, tentando reconstruir as formas comunitárias e a solidariedade entre as pessoas que trabalhavam no campo’. O socialismo do século 21, na compreensão dele é, sobretudo, um socialismo de expansão e desenvolvimento de formas de cooperação e solidariedade.



GH - Morales e Chávez são acusados de não-democráticos. Como você enxerga essas críticas?

FTS - Isso depende do que cada pessoa entende por democracia. Se democracia é uma reunião de pessoas que falam baixo e que resolvem tudo dentro de salões atapetados, então, o que se passa na Bolívia e na Venezuela não é democracia. Acho que a questão central é: existem condições de expressão da vontade da maioria? Que condições essa pessoas têm para exprimirem seus anseios, suas aspirações? Isso tem sido respeitado? Se consideramos o conceito de cidadania ampliado, não bastam eleições regulares, diversidade de partidos e ampla imprensa para termos democracia na América Latina.



GH - Até quando Lula poderá ficar "em cima do muro" em relação a Chávez e seus aliados?

FTS - Eu acredito que o Lula tem sido bastante claro, e não tem ficado em cima do muro. Ele declarou publicamente o apoio dele à candidatura da Cristina Kirchner na Argentina. Ele tem levado um projeto integracionista e de apoio a essas lideranças. Ele afirma que, para o Brasil, não servem os experimentos que estão sendo feitos na Venezuela e na Bolívia, mas diz que não tem nada contra. Seria uma arrogância querermos ensinar à população venezuelana o que é melhor para ela. Votar a favor ou contra Chávez. Isso é de uma arrogância, de um etnocentrismo absurdo. Tanto que, quando os EUA tentaram dizer o que era melhor para o Iraque, as conseqüências foram muito duras.


GH - Chávez não estaria influenciando e tentando mostrar o que é melhor para outros países?

FTS - Convenhamos. A União Européia tem mil ações e missões atuando dentro do Brasil. Faz parte da política, como no caso do Chávez, doar combustível para pobres americanos. Ele não vai conseguir subverter o governo com alguns galões, mas não deixa de ser irônico. E, se os presidentes eleitos da Bolívia e Nicarágua pedem ajuda, não é influenciar. Faz parte do jogo. São estratégias de política de Estado.


GH - Os países vizinhos e o mundo não precisam temer o reaparelhamento das Forças Armadas da Venezuela?

FTS - Chávez tem um Exército de aproximadamente 100 mil homens. O grosso das compras são corvetas, fragatas e submarinos da Espanha; aviões de treinamento comprados no Brasil; 100 mil fuzis comprados na Rússia e fardamentos comprados da China. Então, primeiro, é preciso entender que não se compra arma em geral. Antes de comprar, você precisa ter uma doutrina e um cenário de guerra. Por isso, quando se analisa o conjunto das compras do Chávez, tudo parece defensivo, e não, ofensivo. Todo ano, os norte-americanos põem um porta-aviões em frente a Trinidad e Tobago, praticamente no litoral venezuelano, onde há petróleo. A sinalização de Chávez, com a compra de armas, é que, se houver uma invasão, haverá resistência. Acusá-lo de paranóico seria irresponsabilidade se fizermos uma retrospectiva. Nas últimas décadas, os Estados Unidos invadiram uma série de países ricos em petróleo.
A impressão é que Fidel alertou Chávez e Morales: "Façam o que puderem agora, que os EUA estão com os pés atolados no Iraque e não podem responder imediatamente". E eles realmente estão sem capacidade de intervenção direta e imediata na América Latina pela primeira vez em mais de cem anos.