2.12.07

O Outro Lado

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Como o colega Augusto Paim e eu mesmo achamos o último post bastante parcial, tento equilibrar a opinião sobre o discurso e as ações do presidente venezuelano. O ponto de vista não é meu. É de alguém muito mais autorizado, especializado no tema. Na última quinta-feira, entrevistei o professor de história da UFRJ e analista da Globo News Francisco Teixeira da Silva. Parte da conversa foi publicada no Diário de Santa Maria, onde trabalho com freelancer. Reproduzo aqui o que foi para o jornal. O restante vem outro dia.



Gustavo Hennemann - Que momento do processo histórico vivemos na América Latina?

Francisco Teixeira da Silva - No começo dos anos 80, a maioria da população sul-americana - em Santiago, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro e Lima - foram às ruas pedindo democracia. No continente, a democracia veio no bojo de grandes movimentos sociais, e não pelo arranjo de grupos da elite dominante, como aconteceu em outros períodos ditos democráticos da história. Significa que os grandes movimentos de democratização nesses países foram feitos por movimentos de massa. Nas duas décadas seguintes, essas demandas sociais não foram atendidas. Justamente na saída da ditadura, as pessoas passaram a ter menos empregos, empregos de pior qualidade e menos segurança cidadã. Por isso, a maioria dos latino-americanos, hoje, trocaria a democracia por mais e melhores empregos e mais segurança cidadã.


GH - Como podemos situar a figura do Hugo Chávez nesse cenário? Ele é o motor do movimento socialista da região?

FTS - Esse movimento, que luta por uma cidadania ampliada, se apresenta mais geral. Com características diferenciadas, obviamente, mas vai da Argentina, Chile até a Venezuela. É geral, e não pode ser centrado em um caso específico [de Chávez]. Agora, evidentemente, 1998 [quando Chávez é eleito] soa um alarme.



GH – O socialismo do século 21 é uma nova tentativa daquilo que já não deu certo no século 20?

FTS – Por tudo o que eu vi e conversei na Bolívia e na Venezuela, os experimentos que eles estão fazendo lá são totalmente diferentes do que foi o marxismo. Não se tem mais uma doutrina materialista da história, nem uma classe condutora da história, como o proletariado. Não se tem um partido que faz a história. Em vários encontros que tive com Evo Morales, perguntei por que o movimento se chama socialismo, mesmo sabendo o que foi a União Soviética. Ele disse ‘Socialismo para mim é o que eu vi a minha avó e minha mãe fazendo juntas na terra, tentando reconstruir as formas comunitárias e a solidariedade entre as pessoas que trabalhavam no campo’. O socialismo do século 21, na compreensão dele é, sobretudo, um socialismo de expansão e desenvolvimento de formas de cooperação e solidariedade.



GH - Morales e Chávez são acusados de não-democráticos. Como você enxerga essas críticas?

FTS - Isso depende do que cada pessoa entende por democracia. Se democracia é uma reunião de pessoas que falam baixo e que resolvem tudo dentro de salões atapetados, então, o que se passa na Bolívia e na Venezuela não é democracia. Acho que a questão central é: existem condições de expressão da vontade da maioria? Que condições essa pessoas têm para exprimirem seus anseios, suas aspirações? Isso tem sido respeitado? Se consideramos o conceito de cidadania ampliado, não bastam eleições regulares, diversidade de partidos e ampla imprensa para termos democracia na América Latina.



GH - Até quando Lula poderá ficar "em cima do muro" em relação a Chávez e seus aliados?

FTS - Eu acredito que o Lula tem sido bastante claro, e não tem ficado em cima do muro. Ele declarou publicamente o apoio dele à candidatura da Cristina Kirchner na Argentina. Ele tem levado um projeto integracionista e de apoio a essas lideranças. Ele afirma que, para o Brasil, não servem os experimentos que estão sendo feitos na Venezuela e na Bolívia, mas diz que não tem nada contra. Seria uma arrogância querermos ensinar à população venezuelana o que é melhor para ela. Votar a favor ou contra Chávez. Isso é de uma arrogância, de um etnocentrismo absurdo. Tanto que, quando os EUA tentaram dizer o que era melhor para o Iraque, as conseqüências foram muito duras.


GH - Chávez não estaria influenciando e tentando mostrar o que é melhor para outros países?

FTS - Convenhamos. A União Européia tem mil ações e missões atuando dentro do Brasil. Faz parte da política, como no caso do Chávez, doar combustível para pobres americanos. Ele não vai conseguir subverter o governo com alguns galões, mas não deixa de ser irônico. E, se os presidentes eleitos da Bolívia e Nicarágua pedem ajuda, não é influenciar. Faz parte do jogo. São estratégias de política de Estado.


GH - Os países vizinhos e o mundo não precisam temer o reaparelhamento das Forças Armadas da Venezuela?

FTS - Chávez tem um Exército de aproximadamente 100 mil homens. O grosso das compras são corvetas, fragatas e submarinos da Espanha; aviões de treinamento comprados no Brasil; 100 mil fuzis comprados na Rússia e fardamentos comprados da China. Então, primeiro, é preciso entender que não se compra arma em geral. Antes de comprar, você precisa ter uma doutrina e um cenário de guerra. Por isso, quando se analisa o conjunto das compras do Chávez, tudo parece defensivo, e não, ofensivo. Todo ano, os norte-americanos põem um porta-aviões em frente a Trinidad e Tobago, praticamente no litoral venezuelano, onde há petróleo. A sinalização de Chávez, com a compra de armas, é que, se houver uma invasão, haverá resistência. Acusá-lo de paranóico seria irresponsabilidade se fizermos uma retrospectiva. Nas últimas décadas, os Estados Unidos invadiram uma série de países ricos em petróleo.
A impressão é que Fidel alertou Chávez e Morales: "Façam o que puderem agora, que os EUA estão com os pés atolados no Iraque e não podem responder imediatamente". E eles realmente estão sem capacidade de intervenção direta e imediata na América Latina pela primeira vez em mais de cem anos.

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